quarta-feira, 2 de abril de 2008

Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zangam com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Álvaro de Campos, 1929

Excelente poema de Álvaro de Campos. Analisado até à exaustão na aula de Modernismo e Pós-Modernismo, por alguém que dá gosto ouvir. Partilhar o que achamos do poema e sermos ouvidos, tidos em consideração é bom, mas ouvir a visão deste homem é muito bom!
Quanto à temática do poema acho genial. Eu sinto-me assim muitas vezes, sem dúvida!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
A imagem de que nem os Deuses repararam que "ele" ali estava, o esquecimento pela pessoa é tão genial que dá a sensação de solidão, e que a pessoa "não é", mesmo bruta!


EDIT: A Marta Diegues, leitora do Blog, companheira de curso e amiga, fez questão de me informar que a alguém cantava este poema. A verdade é que quem canta(pelo menos quem eu encontrei) chama-se Margarida Pinto. Aí está o vídeo. Apontamento - Margarida Pinto (Vídeo)

1 comentário:

Di disse...

Nunca te vi tão bonito e gosto do que vejo..qual fénix renascido das cinzas...

Beijinho de estrelas do céu***