O céu estava muito estrelado, mas mal se viam as estrelas. Deveriam ser cerca das onze e meia ou meia noite quando a luz iluminava o seu fato de treino azul sujo, não de feitio, mas de terra. Digo isto com o maior dos optimismos, assim tento ver aquele solitário vagabundo às compras onde os outros deitam os sacos dessas mesmas compras, e aqueles papéis que servem para encher malas de senhora, ou camisas de homem.
Embebido pela loucura dos saldos não me viu. Da varanda do 3º Esquerdo, onde podia olhar bem o bairro social mais bonito que já vi, mirava aquela peripécia e pensava:
-Olha-me aquele! Ou é maluco, e gosta de estragar a ordem social, ou então deve estar com a maior vergonha do mundo e só peço a Deus nunca ter que fazer aquilo.
-Então, porque está aí a remexer essa porcaria? Não tem trabalho? Tem preguiça? Ou a vida não quer nada consigo?
-Tenho trabalho e tenho preguiça, mas não tenho a tua vida! Por essa tua pose deves saber bem o que é alimentar uma família. Saber o que é vestir uma casa. Saber o que é trabalhar!
-Pois, sabe, eu trabalho, a verdade é que não sustento ninguém, mas trabalho.
-Claro - diz o pobre homem - diz-me que vieste cá em negócios!
-Ok, até posso não sustentar ninguém, mas a verdade é que faço muita coisa.
-Se pensas que és especial por isso olha bem para essa senhora que acabou de sair de casa para trabalhar até às oito horas e para depois entrar novamente à uma da tarde.
Dei boa noite e recolhi-me, embaraçado. Afinal, sou apenas mais um. Nada mais há aqui. Se a minha vida é dura, que não é, apenas tem momentos, a do Manolo deve ser linda! Não haja dúvida! Então a da senhora da touca na cabeça...
Só agradeço a minha vida, cada dia que passa, cada momento! Enquanto for assim não é má! Claro que luto para que seja melhor, e tentarei que cada dia seja melhor que o anterior. Espero que os meus se sintam bem comigo, que eu viva também bem comigo e que Deus não me pregue uma rasteira. É que aí eu ia magoar os joelhos, e como já tenho problemas de rótula ia ser complicado depois recuperar. Já tive um ano de fisioterapia, e agora, nestes últimos três meses, também deveria ter passado por lá, na ala da fisioterapia mental...
Obrigado Manolo, de verdade, só tive pena de não ter tido esta conversa contigo, mas provavelmente fugirias, e preferi imaginar que me dizias isso, e que continuasses no teu trabalho...Não seria eu a tirar-te a comido do prato. Quem me dera ajudar-te a consegui-la.